Fernando Reinach: O homem quase foi extinto

11-08-2011 13:26

Segue na íntegra o artigo que o biólogo Fernando Reinach escreveu para o jornal "O Estado de São Paulo" no dia 11 de agosto:

 

 

"Quando sobram poucos indivíduos de uma espécie, ela é listada como ameaçada de extinção. É o caso do tigre-asiático e do mico-leão-dourado. Agora, um grupo de cientistas descobriu que nós também passamos perto da extinção.

Essa descoberta é um subproduto do sequenciamento completo do genoma humano. Mas como é possível decifrar nossa história analisando a sequência de nosso genoma?

Imagine um saco contendo 100 bolas, 25 vermelhas, 25 amarelas, 25 azuis e 25 verdes. Imagine agora que cada uma dessas bolas se divida a cada 24 horas, dando origem a duas bolas da mesma cor da bola mãe.

Ao longo do tempo, a população de bolas no saco vai aumentar, mas a proporção de bolas vai se manter. Se um numero pequeno de bolas "morrerem" (forem tiradas o saco), a proporção entre as cores pode se mudar um pouco, mas deve se manter aproximadamente a mesma.

Imagine que, em dado momento, exista uma mortandade em massa dessas bolas e que só sobrem duas bolas dentro do saco. Essas duas bolas podem ser da mesma cor ou diferentes - de qualquer maneira, duas das quatro cores deixarão de existir. Imagine agora que depois desse evento catastrófico as duas bolam continuem a se reproduzir.

Anos depois, examinemos o saco. Vamos encontrar somente duas cores, descedentes dos poucos indivíduos que sobreviveram à catástrofe. Esse efeito é o que os geneticistas chamam de "efeito fundador", ou seja, uma redução drástica da diversidade genética (o número de cores existentes) de uma população resultante de um afunilamento brutal do número de indivíduos da população em algum momento do passado. Quando o "efeito fundador " é detectado, podemos deduzir que a espécie, por um período, teve poucos indivíduos e portanto correu o risco de ser extinta.

Na verdade, a genética humana é mais complicada, pois não existe somente uma característica (cor), mas milhões delas. Além disso, como a reprodução é sexual, as características se misturam a cada geração. E, o que é importante para esse tipo de análise, surgem novas variantes de cada característica ao longo do tempo (é como se de vez em quando uma bola vermelha tivesse um filho mutante cor-de-rosa, dando origem a uma subpopulação de bolas rosas). O importante é que, analisando o genoma completo de diversos indivíduos e assumindo a taxa de mutação (com que frequência surge uma nova variável, como a bola rosa), esse novo método permite estimar o tamanho da população em cada momento do nosso passado.

 

Funil. Foi isto que os geneticistas fizeram, utilizando os genomas humanos já sequenciados, que incluem pessoas da Ásia, da Europa e da África. Assumindo que o intervalo de tempo entre as gerações é de 25 anos e que a frequência do surgimento de uma nova variedade genética é de 2,8x 10 -8 por geração por base do DNA, foi possível construir um gráfico do número de indivíduos que contribuiram para a diversidade atual de nossa espécie.

O resultado mostra que, há 5 milhões de anos (quando nossos ancestrais ainda eram macacos), a população era grande, mas foi reduzida rapidamente para 100 mil indivíduos por volta da época do surgimento do homo sapiens , há aproximadamente 300 mil anos. Depois, cresceu novamente. O grande funil ocorreu faz 20 mil anos, quando a população efetiva foi reduzida rapidamente e somente mil pessoas (as duas bolas que sobraram no saco) ficaram vivas. Foram somente essas mil que deram origem a todos os 7 bilhões que somos hoje. Se essas mil pessoas tivessem morrido, hoje o homo sapiens não existiria.

Esse resultado vai ser refinado, à medida que um número maior de genomas forem sequenciados. Mas caso essa descoberta se confirme, ela significa que, em um momento relativamente recente, alguns milhares de anos antes de surgirem as primeiras cidades e a agricultura, nossa espécie correu um risco real de ter desaparecido. Se isso tivesse ocorrido, nosso destino teria sido o mesmo de 99% das espécies que já habitaram o planeta - e estaríamos fazendo companhia aos dinossauros. A questão é: que espécie estaria administrando o museu em que nossos esqueletos fósseis estariam expostos?"

Procurar no site